A substituição do suporte simbólico pelo suporte técnico, operada pela comunicação de massas, subentende a afirmação de um princípio de reprodutibilidade radical, dissuasiva e subliminar, de forma que a obra literária se converte em objecto de consumo. Através da lógica do modelo simulado, a obra literária não escapa ao que Baudrillard denomina “semiurgia da arte contemporânea” (BAUDRILLARD, 1981a : 109-21), ou seja, o advento do valor-signo como mais-valia que se acrescenta à obra como garantia de autenticidade: a assinatura. Quando a sofisticação das técnicas de reprodução adultera na totalidade o acontecimento original, entendido por falsificação, a assinatura assume o valor mítico de “legenda” (BAUDRILLARD, 1981a : 112). Assim, deixamos de ter a representação de um mundo, para passrmos a ter um mundo recriado, em que o autor está, na maior parte dos casos, ausente. “Actualmente, só o artista se pode copiar a si próprio. Em certo sentido, ele está condenado a fazê-lo e a assumir, se for lógico, o carácter serial da criação” (BAUDRILLARD, 1981a : 115).
Neste sentido, as imagens dos meios audiovisuais ilustram as considerações de Baudrillard acerca da simulação como “segundo baptismo das coisas”, como produção de realidade, como fim da cena da representação para que se instaure um estado de semiurgia generalizada. Se “simular é fingir ter aquilo que não se tem” (BAUDRILLARD, 1981b : 12), resta-nos questionar o papel das máquinas de visão na elisão do real, pois que, por meio da decomposição e da fragmentação deste, as imagens técnicas empenham-se na geração de um real sem origem nem realidade.
Já para Virilio, o metafilme interessa na medida em que denuncia como a produção desenfreada de imagens através da fotografia e do cinema acaba por colocar em crise os modos de aquisição e restituição do mundo exterior.
Ao lado da ordem sensível e bem visível já se instala o caos de uma ordem insensível, novas imagens espectrais e delirantes que, depois de terem sido roubadas, retocadas e invocadas, podem ser capturadas, vendidas, transformando-se em objecto atraente de um produtivo tráfico de aparências, além de poderem ser projectadas no espaço e no tempo. (VIRILIO, 1993a : 54)
Baudrillard e Virilio recorrem ao filme – O estudante de Praga (Der Student von Prag, 1913), de Paul Wegener – para reflectirem acerca da questão da imagem. Em ambos os casos, considera-se a obra como premonitória, seja da alienação social concreta da imagem, da fatalidade da técnica ou da crise da representação (BAUDRILLARD : 1981c : 234-8), seja do advento de uma estética do desaparecimento, do domínio da actualidade pela virtualidade (com a consequente subversão da noção de realidade) ou do “produtivo tráfico de aparências” (VIRILIO, 1993a : 54). De acordo com Baudrillard, ao vender para o feiticeiro Scapinelli sua imagem no espelho, o estudante Baldwin submete-se a um processo de alienação que tem como princípio o transtorno da reciprocidade entre o mundo e o indivíduo.
A imagem especular representa aqui simbolicamente o sentido dos nossos actos, que formam em redor de nós um mundo à nossa imagem. A transparência da nossa relação ao mundo exprime-se bastante bem pela relação inalterável do indivíduo ao respectivo reflexo no espelho: a fidelidade de semelhante reflexo testifica, de certa maneira, a reciprocidade real entre o mundo e nós. Simbolicamente portanto, no caso de a imagem nos vir a faltar, é sinal de que o mundo se torna opaco e os nossos actos nos fogem – encontrando-nos então nós sem perspectiva sobre nós mesmos. Sem esta caução, deixa de haver identidade possível: torno-me outro em relação a mim próprio, estou alienado. (BAUDRILLARD, 1981c : 234-5).
Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, este confinamento brusco faz com que tudo, absolutamente tudo retorne a este “lugar”, a esta localização sem localização... o esgotamento do relevo natural e das distâncias de tempo achata toda localização e posição. Assim como os acontecimentos retransmitidos ao vivo, os locais tornam-se intercambiáveis à vontade.
A instantaneidade da ubiquidade resulta na utopia de uma interface única. Depois das distâncias de espaço e de tempo, a distância-velocidade suprime a noção de dimensão física. (VIRILIO, 1993b : 13).
A desrealização das formas de representação, o excesso de visibilidade e de transparência, a inelutável conversão da imaginação em imagens, a crise das dimensões e das referências participam de uma constelação de fenómenos histórico-ontológicos que questionam e destinam a literatura no inferno das imagens numéricas. Uma vez mais o número assombra a palavra com as perspectivas de um efeito de real que suplanta a realidade, da mesma forma que privilegia a informação mediatizada em detrimento da informação dos sentidos. Por que a literatura onde a velocidade ilumina até mesmo o não-visto do universo? Onde a literatura quando o fenómeno de aceleração abole nosso conhecimento das distâncias e das referências? Quando a literatura na imediatez do tempo real das transmissões directas à distância?
(Adaptado de Globalização e literatura, organização de Luiza Lobo, Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1999)
quarta-feira, 28 de abril de 2010
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